Festividades dos Dessana tomam conta da Aldeia Multiétnica

21/07/2016 · Por Eduardo Carli de Moraes

Os Dessana, provenientes da região do Rio Negro, no Amazonas, onde existem cerca de 26 diferentes etnias, comandaram as festividades na Aldeia Multiétnica da quinta-feira, 22 de julho. A etnia tem sua origem às margens do rio Tiquié, próximo à fronteira com a Bolívia, e faz parte da família linguística Tukano.

Para chegarem à Chapada dos Veadeiros, como relatou numa roda-de-prosa o xamã Raimundo Dessana, eles tiveram que encarar uma viagem de avião. "É uma pena que eles só nos deixaram trazer 30 quilos de bagagem cada um", disse Raimundo. "Por isso não pudemos trazer tudo o que a gente queria de adornos e paramentos, de ferramentas e de plantas".

Apesar dos limites de peso impostos pela companhias aéreas, os Dessana puderam realizar sua performance ricamente paramentados e demonstrando, através de suas pinturas corporais, gestos de dança e cânticos em conjunto, um pouco desta cultura ancestral (saiba mais nesta matéria de Silvaline Pinheiro (http://www.encontrodeculturas.com.br/2010/noticiasDetalhe.php?id=345) ou no site do Instituto Socioambiental (https://pib.socioambiental.org/pt/povo/desana).

Uma curiosidade espantosa é que o xamã Raimundo, da etnia Dessana, consegue se comunicar razoavelmente com 9 etnias da sua região. Com os parentes que são do grupo linguístico Tukano, por exemplo, ele diz conversar tão bem quanto fazem um brasileiro e um latino-americano de língua espanhola, que dão conta de "se virar", para dialogar, com apelos ao bom e velho portuñol. Somando nesta conta dos 9 idiomas amazônicos também o português e o espanhol, que estão entre as línguas "dos brancos" que ele domina razoavelmente, Raimundo Dessana é indiscutivelmente um poliglota: comunica-se em 11 idiomas e dialetos.

Teve uma vez, como ele alembra, que os franceses tomaram interesse por aprender a sabedoria médica acumulada pelo pajé Dessana junto a seus ancestrais: um médico de um hospital da França queria descobrir a cura para o vírus do HIV e acreditava que Raimundo Dessana poderia ajudá-lo nesta empreitada terapêutica épica de curar a AIDS. O pajé mostrou-se descrente e disse que não ia dar jogo: seria como dois analfabetos que tentassem se escrever uma carta. 

Não havia entre o pajé Dessana e o médico francês nenhuma linguagem em comum para que pudessem, através do verbo, comunicar o essencial de seus saberes. Os abismos de comunicação abrem-se pois há o problema, incontornável, da variedade das linguagens, da diversidade de idiomas, da intraduzibilidade de muito entre elas. Há o indizível na língua do outro e há coisas na língua do outro que na nossa também são indizíveis. Ainda assim, há o esforço da construção de pontes.

A Aldeia Multiétnica oferece um protótipo de espaço de conviência onde a interculturalidade e a diferença reconhecida e assumida têm destaque; um espaço onde buscamos construir pontes sobre estes abismos de incomunicabilidade para nos encontrar num espaço comum. Sabemos que muito se perde na tradução, mas será isto razão para desistir de traduzir? Se comunicar-se é difícil, devemos por isto abandonar a empreitada?

A existência de um espaço assim manifesta uma vontade humana, que é coletiva, de interconexão, de partilha, de troca de saberes. Ninguém disse que é fácil, mas esta perspectiva torna totalmente aceitável que os pajés frequentem sim os aeroportos, que aprendam muitas outras línguas além da nativa. Pois só assim a aldeia global seria capaz, talvez, de ouvir esta voz tão crucial, tão enraizada, tão antiga e tão urgente.